quarta-feira, 3 de dezembro de 2008


o que se ouve entre a opy e a escola - corpos e vozes da ritualidade guarani
2005

índice

capítulo dois




CAPÍTULO UM
INSERÇÃO EM CAMPO E PROBLEMÁTICA

Entre os Guarani: a Opy

Ao escrevermos, como evitar que escrevamos sobre aquilo que não sabemos ou que sabemos mal? É necessariamente neste ponto que imaginamos ter algo a dizer. Só escrevemos na extremidade de nosso próprio saber, nessa ponta extrema que separa nosso saber e nossa ignorância e que transforma um no outro. É só deste modo que somos determinados a escrever. Suprir a ignorância é transferir a escrita para depois ou, antes, torná-la impossível. Talvez tenhamos aí, entre a escrita e a ignorância, uma relação ainda mais ameaçadora que a relação geralmente apontada entre a escrita e a morte, entre a escrita e o silêncio. Falamos, pois, de ciência, mas de uma maneira que, infelizmente, sentimos não ser científica.
(Deleuze, 1988:18)

Esta seção deve iniciar-se com o reconhecimento daqueles que a tornaram possível, os quais devem ser imediatamente absolvidos dos erros e limites que ela venha a conter, atribuíveis somente ao autor.
Refiro-me ao Oim-iporã-ma Ore-rekó, grupo de extensão universitária coordenado por estudantes de áreas diversas da USP, junto ao qual estive trabalhando ao longo dos anos 2001-2003, período da pesquisa.
A presença desses interlocutores, pode-se dizer antropólogos amadores, possibilitou a novidade do conhecimento vivido como acontecimento. As singularidades que envolveram nossas vivências de campo coletivas constituem o cerne do corpus apropriado neste texto.
Assim, minha inserção entre os M’byá deu-se junto a esse grupo no início de 2001, aproximadamente um ano antes de iniciar oficialmente a pesquisa. Compus o grupo que passou a acompanhar Poty Poran, educadora da escola da comunidade. A freqüência à opy, chamada casa de reza, era constante, visto que sempre éramos bem recebidos. O curso de idioma guarani foi uma boa estratégia de inserção na tekoá. Os processos de trabalho e as festas também.
Quando se iniciaram os trabalhos em 2001 a aldeia do Jaraguá já estava dividida em duas: aldeia de baixo, tekoá Itu, e aldeia de cima, que viria a se chamar tekoá Piau (aldeia Nova). As aldeias são divididas espacialmente pela Estrada Turística do Jaraguá. A primeira aldeia é formada pela família de dona Jandira, cacique da aldeia. Esse grupo está ha muitos anos vivendo na cidade. Devido a sua organização, as práticas da cultura hegemônica e a miscigenação conduziram as novas gerações ao monolingüismo do português e ao cristianismo.
A segunda constituiu-se mais recentemente em torno da figura do che ramói José Fernandes, vindo da aldeia da Barragem. Nessa aldeia, cultiva-se o monolingüismo do guarani entre as crianças, que só falam uma ou outra palavra do idioma brasileiro. Os adultos, em sua maioria, são falantes competentes dos dois idiomas, tendo como principal o nhandepy. As práticas místicas guarani ocupam um período considerável de seu cotidiano. É a prática social mais importante da comunidade, momento de aprendizagem de todos, especialmente das crianças.
Com a nossa inserção no grupo, surgiram séries de questões. Entre aldeia e cidade, entre aldeia de cima e de baixo, entre a escola e a opy os questionamentos proliferavam.
Como pensar a produção de conhecimento na sociedade Guarani em que nos encontrávamos, sociedades dispostas em aldeias urbanas? O que eles estão fazendo na opy? O que se aprende? Que sentidos pode ter essa forma que toma seu conhecimento na economia política dessa sociedade? Que funções pode ter a escola para essa comunidade? Como a estética, lida na chave das constituições de perceptualidades, ou de corpos, mais que na circulação de uma arte objetivada e reificada, pode ser apropriada para conduzir esses mundos possíveis a uma (a nossa) epistemologia povoada por categorias e conceitos fechados em circuitos definidos tais como sujeito, objeto e intersubjetividade que tendem a cortar e jogar fora os possíveis outros (marginais, imperceptíveis, as hecceidades) que podem colocá-la em questão, conduzi-la ao próprio ponto em que o conhecimento se produz?
A medida que as situações ideais que condicionam os pressupostos da relação entre discurso do pesquisador e discurso do outro, vão dando lugar às experiências cotidianas aí se começa a produzir o conhecimento. Os questionamentos vão amadurecendo, vão selecionando-se.
Uma questão diferenciou-se. O que sustenta essa singularidade e proporciona a abertura a esses possíveis? A língua, as práticas rituais, o habitus resultante, etc tudo isso certamente, mas mais a relação que os diferencia o discurso. Ou seja: o nhande rekó, que traduzirei por nosso jeito.
Nesse ponto, a propensão experimental de nossos interlocutores foi fundamental para o entendimento desta questão na constituição de nossa relação, pois possibilitaram que se percebesse as singularidades que povoam categorias como sujeito, objeto, intersubjetividade.
Atentamos que esses acontecimentos e essas singularidades multiplicavam nossos modos de apreensão, encaminhando-nos à percepção do que antes não se percebia, da diferença de percepção apontada ou suscitada na interação com nossos outros.
As viagens empreendidas ao Mato Grosso do Sul entre os anos de 2000 e 2004, articuladas às atividades desenvolvidas ao longo de três anos junto aos Mby’á das comunidades de São Paulo ao lado do grupo Oim-iporã-ma Ore-rekó, possibilitaram o contato e amizade no qual se empreendeu esta investigação. A participação no primeiro aty guaçú, grande encontro, já ocorreu como parte desta aprendizagem. Em julho de 2001, casualmente, cheguei à aldeia de Dourados na véspera do aty guaçu. Foi marcante conhecer os guardiões daquela sabedoria que me havia encantado no ano anterior.
O agenciamento escola do branco foi um problema central entre os debates da aldeia para levantar o que é aprender. Tínhamos na mão a pergunta chave: o que é aprender para o Guarani? Os relatos que ouvi e vivi a partir dessa questão foram o caminho das pedras para captar os movimentos entrevistos pela intuição.

a urbe

O contexto em que se insere o trabalho, seja em São Paulo, nas aldeias do Jaraguá, como em Dourados-MS, na área indígena Francisco Horta Barbosa, é eminentemente urbano. Em São Paulo, as tekoá estão mesmo cravadas em meio à região metropolitana, ainda que amparados pelo Parque Estadual do Pico do Jaraguá.
Em Dourados a tekoá localiza-se na zona suburbana, ainda que em continuidade aos limites da cidade, o que nos dá uma distancia aproximada de 7 kms entre a comunidade e a cidade. Assim, os problemas propostos e seus encaminhamentos norteiam-se por esse contexto bastante específico.
A construção de identidades e alteridades nesse contexto cruza-se com o da “sociedade envolvente”, confundindo-se com ele ao mesmo tempo em que faz emergir dessa confusão singularidades, eventos, oportunidades que emergem e acentuam diferenças.
No processo desta pesquisa, os aty guaçu kaiowá colocaram em evidencia essas forças que interatuam. A cidade como zona de desagregação/desintegração da identidade, surge igualmente como referência dos processos de resistência. Desde o princípio, o universo ritual tomou o foco de atenção.
Em que medida se pode compreender o complexo ritual como processo de aprendizagem? Como se articula com a socialidade? Em que pontos contrasta com nossa produção de aprendizagem e de saber? Questões que atravessam este trabalho.
Ainda que não seja boa a convivência com a cidade, ela se faz necessária devido à formação política. A necessidade do ensino do branco, apontada por essas sociedades, refere-se, principalmente, à necessidade de atuação política efetiva, de criação de campos de atuação que possibilitariam a essas sociedades a criação de alternativas para sua resistência. O risco do desaparecimento, do “etnocídio”, faz parte da dinâmica desse jogo de forças.
No entanto, nossa cataclismologia não é pessimista e disto resulta, inclusive, o tom trágico desta investigação. E isso, não só pela criatividade que presenciamos no trabalho com esses grupos. Assume-se aqui a possibilidade de as especificidades dessa produção de conhecimento (as quais passam desapercebidas pela teoria de um ensino diferenciado que não encara os pressupostos (relacionais) de sua elaboração) deslocarem o eixo de nossa epistemologia: perceber n’o movimento. Para tanto, se elaborou um estudo da ritualidade. Aqui, o princípio de composição é percebido ao mesmo tempo que aquilo que ele compõe. O conhecimento Guarani, como seus corpos, não se inscreve sob o modo do fato, mas do feito .
Acredita-se que essas estratégias milenares de produção-transmissão de saberes fornecem lições preciosas aos dilemas políticos implicados em nosso sistema de ensino oficial. Lições essas que não estão nos “livros”, pois encontram expressão em corpos diversos. Essas lições só podem se dar na relação, no convívio. É essa relação que possibilita as linhas de fuga a mundos e modos de existência outros, cuja virtualidade tem o poder de nos reconfigurar em dimensões diversas.
Aqui, coloca-se a problemática deste trabalho que encaminha e define sua metodologia. Decidir-se por não explicar o conhecimento Guarani, por não atualizar seus virtuais. Ao invés, mantê-los como possíveis, aumentar sua velocidade para nos indicarem possibilidades outras de pensamento. Opta-se mesmo por não explicar esse pensamento, o que faria neutralizá-lo; por não verificá-lo, e sim, propô-lo como dispositivo de compreensão. Tão válido quanto os referenciais teóricos que pautam nossas pesquisas e nossa ciência. Com nossa, refiro-me à tradição ocidental, ou branca, como se diz também. Tais princípios coordenam-se às propostas de Eduardo Viveiros de Castro (1986, 1987, 1996, 2002) alinhando-se aos conceitos cunhados em sua etnologia.
Busca-se assim, traçar linhas de fuga no rumo de possíveis suscitados por essas vivências simbólicas. Se esses possíveis não são seguros, esse não é seu ponto fraco, e sim sua força, pois eles encaminham ao que essas estratégias de produção de conhecimento podem reformular em nossa apreensão do mundo, principalmente por descortinarem os pressupostos perceptuais que condicionam nossos conceitos estanques. Seres do devir, como os chama Viveiros de Castro, essa cultura, se diria epistemologia, opera com o corpo, uma pedagogia em seu sentido etimológico e histórico, o que justifica nossa incursão pela perceptividade, menos em termos psicológicos que filosóficos. O modelo tomado é o elaborado por Deleuze-Guattari para conduzir os devires imperceptíveis que liberam o conhecimento das categorias estanques, principalmente as pronominais, às linhas de fuga que conduzem aos acontecimentos e às singularidades que possibilitam fazer uso do plano de imanência para referir-se a um sem número de mundos possíveis (substituindo categorias estanques como sujeito, objeto e intersubjetividade). Assim, o que se constitui como relações intersubjetivas, do que, a partir das concepções estanques é liberado como não apreensível, como relação, como interação enunciativa (visando ainda um substrato consciente que situa na relação a configuração de um sujeito) se inverte radicalmente com o conceito de Outrem (estrutura de outrem, cf. Deleuze, 1974) que visa justamente liberar esse substrato, liberando a antropologia da predeterminação da alteridade para sua própria problematização. A antropologia não explica o outro, e sim, investe na questão: o que pode ser um outro? Quais os outros possíveis? Ao liberar-se da consciência o plano de imanência inventa outras possibilidades para a intersubjetividade.
Por isso a nossa concentração sobre categorias que tratam menos de substratos que de sua função. O que nos fala Deleuze quando afirma que interessa menos a mística que o místico que a sustenta. O silêncio não serve à palavra, e sim como método de reconfiguração do corpo. Não é ausência, negação, e sim afirmação remodeladora. Assim se passa com o sonho, que não serve à consciência numa relação de utilidade como se pode deduzir (e como parece fazer Meliá). O sonho é o próprio caminho, a própria linha de fuga. É ele o eixo perceptivo para onde deve ser conduzida a consciência e não o inverso/contrário.
A qualidade do sentido e a quantidade dos signos variam em sentido inverso. Nas palavras de Clastres, a relação é diametralmente oposta, quanto mais se fala, menos se diz. Como afirma Nietzsche a respeito da nossa loquacidade, tão estranha a uma sensibilidade musical, o que foi diagnosticado (digo: afirmado verbalmente) diversas vezes pelos Guarani.
É assim que se pode falar num devir imperceptível que considera o não alcançável como força, e não como região inexplorada. Esse jogo de forças que fundamenta o conhecimento, essa linha que é a mesma da vida tendendo para a morte e caracteriza o limite-tensão que refere Viveiros de Castro (2002).
Elementos como o silêncio ou o sonho, centralmente integrados nesse regime de saber/conhecimento, teriam essa propriedade de cultivar o corpo, de prepará-lo para a operação com os instrumentos (coletivos/sociais) do regime de intensidades.
Devido a concepção desses elementos em termos de jogo de forças, constituintes do plano de imanência, que se apropria para o nosso caso o esquema de causalidade, a linha causal ou de fuga, traçada para o devir imperceptível. Essa linha causal possibilita traçar o plano que condiciona seu exercício ao suprimir o caráter de elemento oculto do inconsciente.
O mborahei constituiu uma linha abstrata de causalidade específica ou criadora configurando o corpus, conduzindo ao nível em que o desejo investe diretamente a percepção, percepção molecular, devir imperceptível.

Oim-iporã-ma Ore rekó

Não é nos grandes bosques nem nas veredas que a filosofia se elabora, mas nas cidades e nas ruas, inclusive no que há de mais factício nelas.
Deleuze, 1988b: 270

apresentação

O projeto de extensão universitária Oim-iporã-ma Ore-rekó, que integrei entre fevereiro de 2001 e fevereiro de 2004, constituiu o mediador que nos inseriu nas tekoá Itu e Piau, aldeias Guarani da região metropolitana de São Paulo. Dessa experiência de trabalho resulta a face M´bya deste trabalho.
O trabalho do grupo é nitidamente dividido em duas fases. A primeira fase encontra-se descrita em diversos relatórios redigidos pelo grupo e encontram-se publicadas no site. Inicia-se nos anos oitenta com a tese do Professor Carlos Zibel Costa, da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo.
Tratarei neste relato um particular histórico das experiências que pude vivenciar na segunda fase do projeto. O que se refere por segunda fase é o caráter interdisciplinar que o grupo adquire com a reunião de um novo corpo de membros a partir do início de 2001.
A experiência pioneira do grupo até então havia sido a busca de um trabalho participativo entre universitários e comunidade. Essa concepção de trabalho que recebemos e encaminhamos.

o trabalho

A metodologia resultante de nossa prática está certamente calcada na transdisciplinaridade, na plural experiência de formação de seus integrantes. O grupo envolve pesquisadores de áreas diversas: arquitetura, educação, psicologia, antropologia, comunicação entre outros.
Nossa problemática, nossa prática de trabalho exigia que se estivesse além dessa diferença, que essa diferença se atenuasse diante de dessemelhanças outras, mais evidentes.
Podia-se assim, na convivência e estudo com uma outra matriz de pensamento, organização social e padrões de sensibilidade e relacionamento, estar constantemente atento a si mesmo (como comportar-se, como responder adequadamente, como respeitar) de forma que se reconhecia com facilidade um padrão que identificava as ações e o pensamento dos integrantes do grupo (ainda que esse padrão dentro do grupo se tenha ido modificando com o passar do tempo). As diferenças de formação reconhecidas nas atividades conjuntas não ocupavam tanto nossos debates como as questões relativas à alteridade guarani.
Outro aspecto que privilegiava a princípio a criatividade e a experimentação psicológica era a pluralidade de abordagens teóricas a esse universo. Não havia nos primeiros anos uma sistematização nas leituras do grupo. Até sentirmos que um aprofundamento nos debates e nos estudos de cada um dependeria da formação de um grupo de estudos.

as identidades

Há oito meses contatara os Kaiowá no Mato Grosso do Sul. Tinha um princípio de experiência em campo, adentrar uma aldeia, sentir as dessemelhanças. No entanto, essa experiência coletiva redimensionava completamente essa inserção.
Podíamos ter claro em nossas práticas que o ‘paradigma’, o modelo de pensamento e sensibilidade que nos unia culturalmente, era mais abrangente que as nossas diferenças de formação (de qualquer forma, a maior parte do grupo estava em graduação). Constituíamos um poderoso ‘nós’ entre ‘eles’ e os brancos. Tínhamos um nome em guarani.
Essa unidade funcionava também para manter o grupo consciente de uma identidade social de grupo de universitários da Universidade de São Paulo em trabalho com os índios. Cada um devia reconhecer-se nessas personalidades, trafegando por esses limiares, essas zonas marginais.
Essa clareza, administrada com mestria por nossos guias como aspecto fundamental de nossa iniciação (urbana), concedeu ao grupo o privilégio de agenciar tal observatório, tanto de concebermo-nos reconhecendo nosso próprio padrão de pensamento-sensibilidade em grupo (numa incrível experiência de pluralidade com trocas de uma riqueza ímpar, uma máquina com focos abertos e vertentes) como relativizá-lo a partir de um outro padrão simbólico-sensível.

extensão universitária

Uma tal revolução deslocou nosso eixo, imprimindo liberdade em nossos movimentos e nos suprimindo condicionamentos. Não deixamos de ser o que somos e, no entanto, adquirimos uma compreensão que nos transformou a vida.
Uma ruptura inicial do grupo talvez tenha sido com os véus do padrão de conhecimento configurado na formação técnico-científica. Seja em relação à técnica, como à forma de trabalhar, o padrão etnocêntrico caiu por terra.
Houve uma outra formação, sobre outras bases, segundo a qual revimos tanto nossa formação acadêmica, como social. Da Arquitetura à Educação, a dinâmica da troca de conhecimentos redimensionou o monolítico e unidirecional discurso acadêmico numa polifonia crítica.
Pré-concepções e pré-juízos caíram por terra, a partir da convivência com técnicas e práticas milenares, cuja eficácia comprovou-se em nossa própria experiência de aprendizagem. Constatou-se tal eficácia, seja na vida cotidiana de cada um, como na desreferencialização e redimensionamento de nosso próprio universo simbólico e cultural, abrindo nossa percepção para outros universos de conhecimento com seus métodos próprios.

crítica

Com tal ampliação em nosso espectro cultural, pudemos dar início a uma rica troca de conhecimentos em nossos grupos de trabalho. A partir da troca de experiências com os M’bya passei ao estudo das estratégias de submissão escamoteadas em nossos hábitos. Essa operação estava coordenada à elaboração de nossa organização de trabalho.
Esse debate nos permitiu rever continuamente em nossa prática o etnocentrismo que caracteriza a formação acadêmica, assim como reconhecer a face agressiva de um sem número de hábitos automáticos e pressupostos que compõem o quadro de táticas desse etnocentrismo.
Esse exercício nos permitiu aprofundar o reconhecimento de tais práticas em nosso sistema de produção de conhecimento. A forma como o saber é utilizado para arregimentar uma visão do mundo que se supõe e constitui como universal ou global, bem como as conseqüências desse pensamento na fixação de pressupostos, no estreitamento do espectro cultural, no estabelecimento de uma sensibilidade fechada à diversidade, num encarceramento em um universo perceptivo controlado e fechado a possíveis aberturas. Por fim, como esse saber, cuja matriz positivista explicita-se na prática, sustenta as políticas públicas.

trabalho participativo

Mas o que pode haver de tão inovador que possa encaminhar a reflexões tão complexas sobre a produção de conhecimento e a troca de saberes?
Aparentemente, não há nada de extraordinário, que possa levar a considerações tão importantes. No entanto, é nessa aparente simplicidade que está o mistério.
Um grupo de jovens universitários de áreas diversas agrega-se em torno de uma proposta aparentemente incerta: a realização de um trabalho participativo com uma aldeia Guarani situada nas imediações do Pico do Jaraguá, área metropolitana de São Paulo.
Mas o que vem a ser trabalho participativo? Mais que uma exposição objetiva dos termos que podem defini-lo, optamos por processá-lo a medida que avancemos.
A princípio era uma expressão vaga para o próprio grupo e servia mais como uma referência para o direcionamento de nossa organização. Sabia-se do desejo de participação de todos, de que todos participassem.
A expressão tem por princípio a horizontalidade que permita o diálogo. Desde o início concentramos nossa atenção sobre a comunicação, sobre o que se poderia chamar de uma ética discursiva.
Assim, foi nessa troca contínua entre prática e reflexão que se constituiu o trabalho participativo. É certo que todo trabalho de grupo é participativo, mas aqui se tem a participatividade como objetivo mesmo.
Assumir objetivamente tal princípio teria uma função: manter a atenção do grupo sobre os silenciosos pressupostos do nosso discurso etnocêntrico que priva o outro de sua fala ao torná-lo objeto.
Prática característica do logocentrismo ocidental que se absolve de seu contexto, arraigada em nossas heranças positivas, projetando-se numa neutralidade comprometida com seu circuito de poder, com seus centro de referência. Característica que tivemos que identificar primeiramente e gradativamente em nossos próprios discursos.
O estudo que realizamos sobre essa reciprocidade na comunicação, do grupo e no grupo, concedeu-nos grandes avanços no aprofundamento de nossas relações, na compreensão e solução de dificuldades de relacionamento, nas experiências de mediação entre partes conflituosas, no reconhecimento de discursos marcados pela perspectiva etnocêntrica.
Para chegar ao trabalho participativo foi necessário por vezes identificar também o que não consideramos como participativo, tal como certas posturas hierarquizantes. Inúmeras foram as sugestões para que “nos organizássemos melhor” escolhendo coordenadores ou líderes.
Essa descentralização trouxe bons resultados para o trabalho da equipe. Estimulando os novos integrantes e mantendo a unidade, possibilitou uma formação integral para os envolvidos.

gestão financeira

Registra-se ainda, a importante experiência de administração de nosso fundo coletivo. Essa experiência de trabalho marcou o amadurecimento do trabalho do grupo. Durante o ano de 2002, entramos com o projeto junto à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão, via FAU e sob coordenação do Prof. Dr. Zibel Costa, visando um financiamento para o trabalho. O financiamento foi concedido e o grupo passou a responsabilizar-se por dez bolsas de pesquisa em extensão. O grupo constituía-se de doze pessoas.
Após uma série de debates sobre a nossa ordenação financeira o resultado foi a constituição de um fundo coletivo para o qual seriam convertidos aproximadamente 40% do recebimento de cada bolsista, com que se pagariam os não-bolsistas e se constituiria um fundo coletivo voltado para as atividades do grupo. Este foi o único financiamento deste trabalho que ora se apresenta.

criação textual coletiva: a prática criativa

Se a experiência de campo coletiva, entremeada aos debates do grupo, marcou nossa inserção nesse estranho universo de referências e sensibilidade, a experiência de reflexão literária coletiva plasmou a reconfiguração de nossa visão de mundo, marcada igualmente pelos processos de reciprocidade.
Os relatórios apresentados à Pró-Reitoria de Cultura e Extensão representam, pela singularidade de seu processo, em momentos únicos da experiência antropológica transdisciplinar. Certamente seu processo ultrapassa infinitamente o que está impresso, ainda que entre linhas, nos anais.
Característica fundamental desse processo criativo é a retomada reflexiva e a elaboração e recorte das experiências significativas do processo de aprendizagem. Mas e a Ciência? Tais experiências, tão importantes em nossa formação, não nos pareciam lá muito científicas. Momento marcado pelo medo e pela auto-superação. Como elaborar conhecimento a partir de uma matéria tão sutil quanto a experiência junto aos Guarani, um povo tão pouco... científico?
Já tínhamos um princípio. Já havíamos revisto o discurso institucional da nossa autoridade de civilizados. Iniciava-se agora um processo mais profundo de redimensionamento daquilo que havia sido formado em nós e denominava-se Ciência.
Transpor em texto, sintetizar experiências de ordem tão complexa e inédita nos colocava um desafio. A que gênero poderíamos recorrer? Dessa forma, no início meio aos tropeços, adentramos um campo imaginário virgem.
Lembrar daqueles primeiros esboços, que hoje tomam a forma de dissertações é gratificante.

demais produções

O material dos relatórios compunha-se de diversas atividades: o processo de projeção e construção das opy, casas cerimoniais, o acompanhamento e cooperação no projeto pedagógico da escola da comunidade, que resultou no projeto Kuringue Maity, a Horta das Crianças, da elaboração de um vídeo documentário, das viagens para as aldeias da Barragem, de Mongaguá, bem como do intenso processo de cooperação junto a comunidade. São relatados a partir de agora, sucintamente, algumas das atividades do grupo nesse período.

opy

O processo de construção das opy, casas cerimoniais, das tekoá Itu e Piau, consistiu num processo coordenado pelos arquitetos do grupo. Do grupo, apenas Fernando tinha a experiência da construção da escola da tekoá, primeira execução do grupo. Importante momento de superação tanto para o grupo como para a comunidade, caracterizou-se como um dos mais importantes de aprendizagem mútua.
Erigir um templo durante este processo de trabalho teve uma importância crucial no seu encaminhamento. Essa dimensão foi o que buscamos captar nesse vídeo realizado pelos construtores.

vídeo

As práticas de construção e aprendizagem do povo M’byá, que confluíram na experiência de concepção e confecção de uma obra multimídia, possibilitaram desmistificar diversos aspectos da nossa própria cultura. O vídeo teve início com a desconstrução da antiga casa cerimonial M’byá. Captou o processo de construção de duas casas cerimoniais, bem como um nhemongaraí, rito de nomeação das crianças, o mais importante cerimonial Guarani. Esse trabalho só foi possível devido à confiança do che ramói Gwyrá Pepó.

projeto Kurimgue Maity

O modelo de interação na elaboração do saber não se restringe ao modelo interlocutório mestre-discípulo, pois se abre, numa concepção sociomórfica do cosmos, para uma aprendizagem do caminho, busca à qual o outro não pode transmitir senão aconselhar como conhecedor do seu próprio caminho.
As experiências de viagem realizadas no âmbito do projeto Kurimguê Maity são resultado de um processo de concepção de um conhecimento propriamente Guarani.
Tais viagens, destinadas a princípio, à coleta de materiais para cultivo na área, as viagens desdobram-se numa metodologia própria.
Além de todos os conhecimentos com que o estudante toma contato na área indígena que visita, o contato com plantas tradicionais, a exposição de seus preparos e usos, seu cultivo etc, bem como a própria viagem, constitui-se como elemento específico dessa aprendizagem.

curso de nhandepy

Realizaram-se ao longo do segundo semestre de 2002 e do primeiro semestre de 2003, na tekoá Piau, o curso de nhandepy, nosso idioma, o Guarani. O curso foi promovido pela associação Ambá Verá. O primeiro módulo foi ministrado por Karaí Mirim, William Macena e o segundo por Maurício Popyguá. As aulas abriram um espaço de troca fundamental para o envolvimento do grupo com a comunidade e a cultura Guarani. Esse tornou-se um momento em que se podia dialogar sobre a cultura Guarani atenuando o distanciamento imposto pelos questionários antropológicos. As aulas foram realizadas na opy, espaço propício para tanto.

oficina de fotografia

O projeto inicial da oficina de fotografia tomou outro rumo e limitou-se às nossas experiências de trocas de imagens. O Oim-iporã-ma tem um acervo de aproximadamente três mil fotos. Nossa intenção com a experiência era que eles mesmos produzissem suas próprias imagens. O projeto foi levado com delicadeza por Adriana e Daniela e trouxe bons resultados.

oficina de serigrafia

Essa oficina, coordenada por Daniel, teve o propósito de produzir as telas para serigrafia que pudessem ser usadas para produção de roupas e acessórios pela comunidade. As estampas tinham símbolos Guarani, tal como o trançado. 


sítio eletrônico

O sítio eletrônico constituiu um espaço importante de troca de conhecimentos. Lá estão armazenados os trabalhos produzidos pelo grupo, incluindo: atas de nossas reuniões, textos dos pesquisadores, bem como os projetos elaborados ao longo desses anos e as análises de seus resultados seus resultados. Seu endereço é: http://br.geocities.com/aldeiajaragua

tempo guarani

Em certo momento, percebeu-se no grupo a sensação da serenidade guarani, que contrastava com a ansiedade que nos caracterizava. Observamos que a diferença relacionava-se com o ritmo, a velocidade, o movimento, e também com a concentração.
Em colaboração, passamos a criar um espaço intermediário em que nos sentíssemos à vontade para conviver mais calmamente, vivenciar a sensibilidade guarani e não precisar ir embora logo, toda vez que se chegava na comunidade.
A medida que o grupo foi se modificando em conjunto, cada um pode observar-se a partir dos outros. Passou-se a constatar onde se exercitava, de onde trazíamos a prática desse tempo apressado, angustiante. A universidade foi o primeiro alvo da nossa atenção, que depois, se ramificou por toda nossa experiência de formação. Nossa experiência do tempo se modificou.
A medida que fomos entrando, todos juntos, em colaboração mútua, um ajudando o outro, nesse plano que denominamos tempo guarani, tornávamo-nos conscientes de nossas modificações, de nossas conquistas.
Em nossas noites à beira do fogo, consagrando o petynguá, cachimbo guarani, ouvindo os mborahei, cânticos devocionais, participando do canto-dança, pudemos sentir a força e o poder cultivado por este povo em seu coração como Nhande Ru e Nhande Sy, Nosso Pai e Nossa Mãe.
Esse processo de participação íntima, de confluência no universo místico guarani, foi conduzido pelo universo sonoro que fundamenta sua organização cerimonial. Nossa atenção foi despertando para a singularidade de cada vivência coletiva na opy.
Aliadas à convivência na serenidade Guarani, as vivências cerimoniais conduziram nossa sensibilidade em confluência ao tempo guarani, esse pulsar que é o mesmo da Terra.
A partir de então, foi possível começar a imaginar o sentido daquela aldeia guarani entre o parque e a cidade. A dimensão de seus projetos e trabalhos, bem como a que se referiam quando nos remetiam a semelhança e a diferença entre o nosso encontro e o contato de nossos antepassados.
Sentimos ressoar em nós o alcance da herança que esse povo traz consigo e compartilha conosco de coração. Era mesmo o caso de nos alinharmos, pois reconhecemos o tesouro guardado dentro daquelas casas e pessoas simples.